Nova legislação amplia o papel da hemenêutica constitucional na definição de conceitos fundamentais do sistema tributário.

A Constituição não fala apenas pelo que diz. Muitas vezes, o que ela sugere, omite ou pressupõe tem tanto peso quanto as palavras escritas em seu texto, como lembra o jurista Humberto Ávila em “Limites Constitucionais à Instituição do IBS e da CBS”. Interpretar a Constituição é um exercício que exige leitura atenta, não só à letra da lei, mas principalmente ao seu espírito. Em um sistema como o nosso, com cláusulas que podem representar algum tipo de abertura, mesmo que a Constituição porte conceitos e princípios que exigem ponderação, interpretar é proteger.

Esse foi o eixo central do debate sobre a reforma tributária no Congresso Brasileiro de Direito Tributário (IDEPE), onde a hermenêutica constitucional foi tratada como bússola necessária diante das mudanças em curso. Afinal, a Constituição é e sempre será a régua de compreensão do nosso ordenamento, nosso sistema tributário parte da Constituição.

É preciso ter em mente que, apesar de trazer transformações significativas, a reforma tributária não desmonta os alicerces da nossa Constituição. É como reformar uma ponte enquanto os veículos ainda passam: o trânsito segue, mas a engenharia precisa ser cuidadosa para que a estrutura não desabe. A nova travessia exige que os pilares constitucionais permaneçam firmes.

A reforma não rompe, mas reconfigura. E como toda reconfiguração normativa de grande escala, é preciso uma interpretação madura e fiel ao texto constitucional. Juristas, gestores e contribuintes se veem diante de um novo sistema de tributação, que exige novas formas de pensar velhos institutos, que inclusive já foram muito tratados de forma contundente por grande parte da doutrina.

O que era velho se faz novo: a releitura constitucional faz tudo se transformar. O (antigo) art. 110 do CTN, que impede a lei tributária de alterar a definição de conteúdos, alcances, conceitos e formas do direito privado utilizados pela Constituição Federal, ganha holofotes neste momento de novas regulamentações. 

O que antes era pontual agora é estrutural. Termos como “prestador de serviço”, “operação onerosa” e “circulação de bens” são eixos de uma nova caminhada. Afinal, no direito, a interpretação é a própria reformulação dos textos normativos, como uma verdadeira tradução, assim nos ensina Riccardo Guastini em “Das fontes às normas”.

A tão prometida “simplificação tributária” carrega um paradoxo. A multiplicidade de dispositivos acompanhada da proliferação de exceções intriga a ideia da promessa de um sistema mais simples. Aqui percebemos que a interpretação de normas a decretos deixa de ser uma etapa final do processo normativo e passa a ser condição de existência para a efetivação constitucional da reforma tributária.

A própria LC 214/25 prevê mais de 30 temas a serem regulamentados por decretos. E isso, em matéria tributária, precisa de atenção. O princípio da legalidade é um pilar que não pode ser flexibilizado. Quando o Executivo assume a função do Legislativo, corre-se o risco de fragilizar a previsibilidade e a transparência, expondo o contribuinte a um ambiente normativo instável. 

Esse cuidado interpretativo também se aplica aos limites materiais da tributação. Um bom exemplo está nas chamadas operações não onerosas, agora passíveis de tributação. O espaço concedido à lei complementar para definir esses fatos geradores exigirá uma hermenêutica firme para que os contornos constitucionais não sejam transbordados. Aqui, a complexidade não precisa ser encarada como um erro, mas sim como um convite à leitura constitucional dos fatos.

O mesmo vale para a reclassificação de setores em regimes específicos, como hotelaria, bares e produtos de higiene pessoal. A finalidade pode ser socialmente justificável, mas os meios precisam continuar dentro da moldura constitucional. A interpretação precisa respeitar a isonomia e a racionalidade da tributação, sob pena de fazer da exceção uma nova regra.

Além disso, o sistema tributário não pode abandonar suas raízes constitucionais, porque estamos caminhando cada vez mais para a automatização fiscal. Plataformas digitais, confissão automática de dívidas e execuções sumárias substituem o contraditório por algoritmos. A hermenêutica constitucional, nesse contexto, não é somente um instrumento técnico, mas uma ferramenta de defesa da dignidade humana. 

Porque, ao fim, quando falamos em leitura constitucional, estamos falando também em direitos fundamentais. Embora a tecnologia possa nos ajudar (e muito), não podemos esquecer que contribuintes são, sobretudo, pessoas. A Constituição foi feita para elas, e é a elas que o sistema tributário deve servir, com justiça, clareza e humanidade.

A reforma tributária amplia a necessidade de reler a Constituição. O desafio do jurista, agora, não é mais discutir o mérito da reforma, mas garantir que sua implementação respeite os princípios constitucionais. A legalidade, a segurança jurídica e a não cumulatividade continuam sendo faróis. E a Constituição Federal, o mapa para não nos perdermos no caminho.

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